Aniversário
Letícia desligou o computador, pegou o casaco e saiu. Não aguentava mais as felicitações animadas e as zoações engraçadas, precisava de algum lugar onde ninguém soubesse que era seu aniversário.
Desceu a rua, o vento de setembro bagunçava seu cabelo avisando que a primavera ia chegar em breve.
“Quantas primaveras?” — como ela odiava essa frase! Essa tentativa ridícula de amenizar uma pergunta que ela odiava responder.
Grande merda fazer trinta anos! Não havia alcançado nada do que havia planejado ter com trinta anos. Trabalhava em uma loja de calçados, morava com o pai e não tinha nenhuma perspectiva de sair de casa. Os cinco anos no curso superior só serviram para ter um diploma, que sempre sonhou em pendurar na parede com um vidro bonito e agora estava num envelope jogado em alguma gaveta.
Virou à esquerda depois do semáforo e atravessou o calçadão. Pelo menos era domingo e o centro da cidade estava completamente vazio.
Também não tinha namorada — e pensando bem, nem queria uma; não tinha paciência para ter mais alguém enchendo no pé. Já bastava o pai, que a tratava como adolescente, sempre perguntando horários, sempre pedindo favores, sempre pegando dinheiro emprestado para encher a cara. Bom, pelo menos a parte de encher a cara ela entendia bem, nada melhor para esquecer a merda em que viviam.
Entrou na praça principal, onde algumas famílias aproveitavam o dia de sol. Duas crianças passaram correndo, quase esbarrando nela. Ouviu os pais berrando um pedido de desculpas ao longe, mas apenas ignorou.
Pensando bem, realmente queria ser a adolescente que o pai achava que ela ainda era, quando a única preocupação era a hora de voltar pra casa e passar de ano no colégio, e ela não precisava carregar o pai bêbado pra casa. Quando seus únicos medos eram escolher o que ser quando “crescer” e de quem ela gostava.
Entrou na rua principal caminhou reto mais algumas quadras, até a entrada do metrô. Ignorou a escada rolante e desceu as escadas de acesso sem nem encostar no corrimão.
E nada ia mudar tão cedo! A miséria que ganhava como vendedora mal ajudava em casa e pagava as bebidas baratas dela — e do pai. E logo seria demitida de novo, cada vez menos conseguia sorrir para os clientes que a tratavam como bosta, e já haviam reclamações sobre seu mau humor. Estaria desempregada de novo, sem grana nem para encher a cara e esquecer que o mundo lá fora existia.
Comprou um bilhete de metrô e atravessou a roleta sem muita certeza de para onde estava indo. Só queria ir. Para longe de casa, para longe do pai, longe do próprio aniversário, pelo menos hoje.
Voltar para as filas de emprego. Voltar a forçar o sorriso na entrevista, a se rebaixar por migalhas, a ver os ex-colegas felizes nas redes sociais com suas famílias, suas viagens, seus sucessos, enquanto ela sequer conseguia um emprego na sua área. Enquanto eles jantavam em restaurantes legais, ela estaria indo para a fila de um novo supermercado passar a noite para garantir que ao menos entregaria o currículo. Enquanto eles realizavam sonhos, ela estaria explicando pela centésima vez o por quê de não estar trabalhando na profissão em que se formou. Enquanto levavam seus filhos pra escola, ela levaria o pai bêbado pra casa, daria um banho e lavaria as roupas fedendo a canha e vômito.
Viu o metrô chegando: era esse mesmo. Foi sem pensar muito.
E não pensou mais.